O fundador d’A Arca, Jean Vanier, uma
comunidade residencial que junta voluntários e pessoas com deficiência, faleceu
na noite desta terça-feira (7), aos 90 anos, segundo informação do Serviço
Pastoral a Pessoas com Deficiência.
“É com tristeza mas ancorados na esperança da
vida eterna que partilhamos que Jean Vanier partiu para os braços de Deus. Que
Deus o acolha tal como ele acolheu tantos e tantas, principalmente os mais
frágeis”, pode ler-se num comunicado enviado à Agência Ecclesia.
Jean Vanier foi também responsável pela
criação do movimento ‘Fé e Luz’, que procura integrar pessoas com deficiência e
os seus amigos nas comunidades eclesiais, estando presente em 82 países,
incluindo Portugal.
Filósofo, teólogo e humanitário canadense,
Jean Vanier nasceu em 1928; autor de vários livros sobre religião, deficiência,
normalidade, sucesso e tolerância, recebeu em 2015 o Prêmio Templeton,
considerado como o prêmio Nobel da espiritualidade.
“Ficamos com o seu legado através das inúmeras
publicações que fez, algumas traduzidas para português, e com a
responsabilidade de mostrar ao mundo que é na nossa miséria que encontramos o
amor de Deus e que as pessoas com deficiência ajudam a encontrá-Lo”, refere a
nota.
No início do mês Jean Vanier deu entrada numa
comunidade d’A Arca, próxima de Paris, em França, afirmando estar
“profundamente em paz e cheio de confiança”.
“O meu corpo está fraco, já não me posso
levantar e por isso passo o meu tempo todo deitado e faço exercícios com as
minhas pernas. Ainda tenho dificuldade em falar, mas penso que isso se pode
resolver. Não tenho a certeza do que vai ser o futuro, mas Deus é bom e seja o
que for que acontecer, será o melhor”, afirmou a colaboradores próximos.
O Serviço Pastoral lembra a mensagem de
“beleza e do grande valor das pessoas com deficiência” que Jean Vanier deixou.
“Lembrou-nos que temos não só que respeitar
mas aprender com os mais frágeis, os pequeninos de Deus. Teve uma vida longa e
muito bonita ao serviço de Deus e da Igreja”.
Registramos
abaixo suas dez regras para a vida:
Dez
regras para a vida
Por
JeanVanier
1. Aceita a realidade
do teu corpo
Para que um homem se torne homem, deve estar
confortável com o seu corpo. Um corpo é frágil, como todos os corpos. Nascemos
na fragilidade, como bebés, morremos na fragilidade. E quando se chega a uma
certa idade… 90 anos! [estas palavras foram proferidas por ocasião desse
aniversário], começamos a tornar-nos mais frágeis; esquecemo-nos do que
queremos dizer, esqueço as palavras; estou mais frágil, tenho de fazer uma
sesta após o almoço, tenho de ir andar, porque se não ando, dizem-me: "Se
não os utilizas, perde-los". Tenho de aceitar que tenho 90 anos, já não
tenho 50 ou 40 ou 30. Não posso fazer tudo aquilo que gostaria de fazer. Mas
descubro que é bom ser eu mesmo, hoje.
2. Fala das tuas emoções e
dificuldades
Os homens têm dificuldade em exprimir as suas
emoções. A maior dificuldade com os homens é que quando estão contrariados,
depressa se encolerizam, e a cólera depressa pode tornar-se violência. Se têm
períodos de solidão, ou sentimentos de não ter sucesso, os homens podem
rapidamente compensar isso com um pouco mais de álcool, um pouco de droga,
porque a realidade é difícil. Os homens têm dificuldades com a realidade. Os
homens são maravilhosos na ideologia, na ideologia da normalidade. Podem
desligar-se da realidade. E “ser humano” é “amar a realidade”.
3. Não tenhas medo de não
ter sucesso
Os homens têm muito rapidamente a tendência
para julgar, porque a necessidade de ganhar é muito profunda. Não digo que as
mulheres não tenham necessidade de ter sucesso, mas há esta inclinação. Nos
homens é uma questão de poder, de sucesso, e um grande medo, um dos maiores
medos é o de não ter sucesso. E, portanto, o medo da doença, medo da
fragilidade, medo de não ter sucesso, porque há esta equação: "Serei amado
se tiver sucesso". Mas eles têm de descobrir: "Tu és belo como
és".
4. Numa relação, reserva
tempo para perguntar: "Como estás?"
O amor está ligado à fragilidade. Muitas
vezes, os homens não veem a tirania da normalidade, enquanto que a mulher tem
uma inteligência maior e vê as coisas, mas os homens podem ser apanhados… Eis
um dos maiores problemas do homem: será que ele se casou com o seu sucesso no
trabalho, ou casou-se com a sua mulher? O que é mais importante: subir a escala
das promoções? - "vê, acabei de ter um aumento de salário! Tenho de viajar
mais". Mas ele nem sempre reserva tempo para perguntar "como
estás?"; "de que é que precisas?". Ele tem de amar a sua mulher na
sua diferença: a sua afetividade, a sua sexualidade… Ela é diferente. Aceitar
as pessoas como são.
5. Para de olhar para o teu
telemóvel. Sê presente!
Estamos num mundo onde as ideias flutuam, e
em que estamos mais controlados pela televisão e internet, e mais controlados
pelo telemóvel. Por exemplo, eu recebi aqui [casa de repouso] cinco jovens, e
todos tinham os seus telemóveis no bolso. E eu disse-lhes: "Vós sois
pessoas de comunicação. Sois pessoas presentes? Sois capazes de escutar? Sois
capazes 'de estar com'?". Há toda uma visão com as novidades tecnológicas
– que são fantásticas! –, mas como todas as tecnologias podem-nos conduzir ao
extraordinário. E a interioridade, a reflexão, a presença aos outros, diminui.
6. Pergunta às pessoas:
"Qual é a tua história?"
Ser humano é saber como estar em relação. E
estar em relação é: "Conta-me a tua história". Vou contar-vos a
história de uma responsável na Austrália que trabalhava junto de pessoas no
meio da prostituição, para as ajudar a sair dela. Um dia ela estava num parque,
em Sydney, e havia um jovem prestes a morrer de overdose. E as suas últimas
palavras foram: "Tu quiseste sempre mudar-me, nunca me quiseste
encontrar". Porque encontrar é escutar. "Conta-me a tua história,
diz-me onde está a tua ferida, diz-me onde está o teu coração, as coisas que
desejas". Por isso, quem é humano é alguém que sabe como encontrar-se com
os outros, como trabalhar com os outros, como amar os outros, como ver que tu
tens dons que eu não tenho! Eu tenho dons, claro, claro! Tenho dons. Sei
coisas, tenho experiência, tenho 90 anos de experiência. Mas tu também. Tu
viveste experiências. Tu tens diferenças. Por isso preciso de te escutar.
Porque a tua história é diferente da minha história.
7. Sê consciente da tua
própria história
Tu és tu! E eu sou eu. Tu és precioso. Tens
as tuas ideias, políticas, religiosas, não religiosas… Tens a tua visão do
mundo, ou só a tua visão para ti mesmo. Mas eu também. A minha educação. Porque
é que eu de repente me zango tão depressa por alguém me contradizer? Temos um
temperamento, temos mesmo algo mais profundo do que isso, que é o inconsciente.
Por isso, quando falo da necessidade de ser mais humilde, estar mais à escuta,
isso deve-se à minha história. Os primeiros anos da infância marcam-nos. Por
isso tenho de compreender o meu temperamento. Isso pode ajudar-me a compreender
por que é tu estás sempre a falar, enquanto que eu permaneço em silêncio.
Porque é que alguns estão sempre prestes a escapar-se na sua cabeça e não se
ligam facilmente à realidade; gostam de pensar em coisas, mais do que estar em
contacto com a realidade. Não é apenas algo que controlemos pela nossa vontade.
Há o nosso inconsciente que devemos aprender a conhecer. Temos de descobrir
onde estão os nossos medos, qual é o nosso maior medo. Porque esse é o problema
fundamental. Talvez na tua história haja uma história de medo…
8. Detém os preconceitos:
encontra-te com as pessoas
Nós somos apanhados na tirania da cultura,
que é a minha cultura, o meu grupo, a minha religião, o meu partido político,
meu isto, meu aquilo, porque isso dá-me segurança. Mas "ser humano" é
"tornar-se livre". Livre de ser eu mesmo. Livre de me tornar um
membro da humanidade. Vou contar-vos uma história de quando estava no Chile.
Fui acolhido no aeroporto por Denis, para me conduzir a Santiago. E no caminho
ele abrandou e disse: "À esquerda, todas as casas ricas são defendidas e
protegidas pela polícia e pelos militares. Do outro lado estão as
barracas". E depois disse: "Ninguém atravessa esta estrada. Toda a gente
tem medo". Portanto, o grande truque para ser humano é encontrar as
pessoas. Encontrar pessoas que são diferentes. E isto não são apenas grandes
ideias! O grande truque é a experiência. As pessoas precisam de viver uma
experiência, não de viver ideias. Como, por exemplo, ir do bairro rico para as
barracas daquela cidade. Tu precisas de encontrar as pessoas, e descobrir que a
outra pessoa é magnífica. Então, como criar encontros? É a grande questão.
9. Ouve o teu desejo mais
profundo e segue-o
Nós somos diferentes, muito diferentes, dos
pássaros e dos cães. Há hoje uma tendência que diz que os homens são como os
animais. Claro que são! Mas os animais são muito diferentes. Nós, os seres
humanos, não nos contentamos por comer e ter bebés. Há algo mais. Há uma
espécie de infinito no nosso interior. Não ficamos satisfeitos com o que é
finito. Queremos quebrar os muros das prisões. Chamo a isso a busca espiritual,
a busca do infinito. Toda a gente quer isso! Quando se está sentado no alto da
montanha a contemplar o mundo, o mar, o sol, a contemplar as flores! Contemplar
de onde vem tudo isso? O universo começou, o universo terminará. Onde? Porque é
que começou? E onde terminará? Eu tive a oportunidade, quando tive um grande
desejo, aos 13 anos, de me juntar à Marinha de Guerra britânica em plena
guerra; era perigoso, mas o meu pai escutou, e disse: "Se é o que tu
queres, deves fazê-lo". Ele deve ter percebido que não era apenas um
desejo vão. Era um desejo autêntico. E é o que eu chamaria hoje “a voz
interior”. Qual é o teu maior desejo?
10. Lembra-te de que um dias
morrerás
Eu não sou o rei do mundo, e seguramente não
sou Deus! Sou apenas alguém que nasceu há 90 anos e que vai morrer daqui a
poucos anos… e depois toda a gente me esquecerá. É a realidade. Estamos todos
aqui, mas somos apenas pessoas de passagem, em viagem. Entramos no comboio,
saímos do comboio, o comboio continua. A humanidade existe há milhões de anos,
e aqui estamos nós hoje, qualquer que seja o ano, 2000 e qualquer coisa. E o
mundo vai continuar quando eu já não estiver nele.
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