Padre
Antônio José Afonso da Costa
Pároco
da Paróquia Nossa Senhora de Fátima Rainha de Todos os Santos
Você deve ter ouvido muitas vezes ao longo
das últimas semanas que “se sou dono do meu corpo, faço com ele o que quiser;
meu corpo, minhas regras!”. Mais ainda, esse “evangelho” da liberdade tem sido
apresentado como algo tão óbvio, tão “natural”, que, se não é capaz de
abraçá-lo imediatamente, há um diagnóstico: você é doente de preconceito!
Mas, pensando bem, qual é a lógica que está
por trás desse tipo de afirmação? Até onde ela pode nos levar? É preciso
colocar um ponto de interrogação nas frases que ouvimos serem ditas de forma
tão contundente, para percebermos um tipo de raciocínio que Bento XVI denunciou
como “ditadura do relativismo”. Afinal, será mesmo que “meu corpo, minhas
regras”?
Em primeiro lugar, é preciso questionar até
que ponto podemos transformar nosso corpo num objeto de uso ou de caprichos,
como se ele não se identificasse conosco. Quando afirmo “meu corpo, minhas
regras”, estou assumindo que minhas ideias, ou melhor, minhas vontades, podem
transformar meu corpo de tal maneira, que ele se torna apenas a expressão de
minha ‘onipotência’. O problema é que meu corpo não é apenas objeto de minhas
escolhas; ele também me impõe limites, me identifica como pessoa, me situa num
tempo e espaço determinados. Ou seja, não sou tanto eu que imponho regras ao
meu corpo, como se ele fosse algo que tenho nas mãos (estranho isso, não?!),
mas é ele que me dá um ponto de partida e me faz lembrar que não sou
onipotente, alguém independente de limites. É interessante que, se usássemos
até o fim a lógica do “meu corpo, minhas regras”, isso nos levaria a absurdos.
Um exemplo? Quando nos machucamos ou sentimos dor, não nos passa pela cabeça
dizer: “meu corpo está doente”. Dizemos simplesmente: “eu estou doente”.
Identificamos a doença ou a dor com algo que coloca limites não simplesmente ao
nosso corpo, como se ele fosse um pedaço de nós, do qual podemos prescindir,
mas a nós por inteiro. Na lógica do onipotente: “meu corpo, minhas regras”, o
mais acertado seria dizer: “meu corpo está doente”. Continuar nesse raciocínio,
contudo, seria mais difícil. Afinal, alguém poderia dizer: “ora, então dê um
jeito nele e pronto!”.
Além disso, é preciso lembrar que o corpo é o
“lugar” onde nos encontramos uns com os outros. Nossa convivência social se dá
justamente através de nossa corporalidade. O direito, que garante a justa
convivência entre as pessoas, se baseia sobre a “materialidade dos fatos”, ou
seja, sobre nossa corporalidade. Isso significa que, para que haja justiça,
deve haver regras comuns a todos, capazes de ser compreendidas e vividas por
todos, a fim de que a convivência em sociedade seja possível. Regras são sempre
algo capaz de ser compartilhado por muitas pessoas. É assim num jogo de
futebol, por exemplo. Se alguém resolve fazer um gol com a mão, não poderá
dizer simplesmente: “minha bola, minhas regras!”. Nesse caso, não temos regras, mas apenas
procedimentos individuais, caprichos ou qualquer outra coisa do gênero. Ora,
sugerir que regras são apenas a expressão da vontade daqueles que as definem é
o primeiro passo numa de duas direções: ou do individualismo absoluto ou do
autoritarismo do legislador, que pode ser, por exemplo, um Estado forte.
Bento XVI certa vez afirmou que vivemos num
tempo em que a Igreja deve ajudar a humanidade não somente a crer, mas também a
pensar. Caso contrário, corremos o risco de inviabilizar a convivência pacífica
entre pessoas e povos em nome de um relativismo exacerbado e eivado de
individualismo. O Papa Francisco, num discurso ao corpo diplomático acreditado
junto à Santa Sé, lembrou que “sem a verdade, não há verdadeira paz. Não pode
haver verdadeira paz, se cada um é a medida de si mesmo, se cada um pode
reivindicar sempre e somente os direitos próprios, sem se importar ao mesmo
tempo do bem dos outros, do bem de todos, a começar da natureza comum a todos
os seres humanos nesta terra”. O problema da lógica do “meu corpo, minhas
regras”, é que ela inviabiliza o diálogo e, para combater um preconceito, gera
uma infinidade de outros. É preciso pensar um pouco mais.
Fonte: Jornal Testemunho de
Fé, pág. 14
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